segunda-feira, 10 de junho de 2019

Insone


E então a noite descortina
o pensamento que me drena
roubando-me o sono com desazo,
sugando-me o sangue feito fera.

Dissimulado, permaneço alerta,
a circular pachorrento
entre os cômodos da casa
semelhante ao hamster em sua esfera.

Vou-me tarde de mim mesmo
rumo à cama que me espera.
Os olhos fecham, mas o dia não acaba,
enquanto a noite se esvai – já era... 

Almoxarifado


Bem guardado está teu peito,
trancado por sete chaves
nos arquivos de um almoxarifado.
Entre suas prateleiras
o silêncio se organiza
nas seções de um passado
com promessas e premissas
relegadas à poeira
das cantoneiras de aço
e dos fundos de gavetas frias.
Fora de tais trancas,
corações que seguem livres,
sem portas ou cadeados,
sem amarras, inclusive,
celebrando a existência, sem pressa, sem reza,
sem prece inconteste ou convite,
experimentando a liberdade sem limites.

Bem guardadas neste almoxarifado,
cada parte do que fomos
pouco a pouco desvanece,
enquanto o tempo
– alimento de boa amnésia –
lentamente nos esquece...

Sobras Carentes



A imagem que agora não vejo
é miragem do que já não sou.
Foi com o vento, foi com o tempo,
foi levada por tormentas
que atormentam o que sobrou:
lembranças de um tempo perdido,
lugares em que já não estou. 

Traficante Da Poesia


Levo versos na bagagem
e umas rimas com a outra mão.
Fujo incerto de olhares,
melindrosos aos milhares,
sussurrando com a visão.

Levo estrofes viciantes
e redondilhas estupefacientes.
Atravesso mil fronteiras
com poesia da lata, maneira,
compacto pó aos desalentos.

A poesia é bom bagulho
que desperta assédio e gula.
Causa dependência em versos
que me fazem réu confesso:
da poesia, sou a mula.

Mau Defunto



Pois era homem sem razão e sem escrúpulos,
sem emoção – menos ainda coração.
Bandido, de tão mau era dos bons.
Trazia um rastro de sangue em suas botas
e a soma de inúmeras mortes
saindo pelo “ladrão”.

Pois era homem que, ao morrer, não ganhou pranto,
que tinha fama de demônio, não de santo,
desmerecendo extrema-unção e carpideiras.
Sem céu ou chão, ficou no limbo do Eterno,
pois de tão mau,
não foi aceito no inferno. 

Manhãs De Inverno


É bem menor a vontade que tenho
de dizer a que venho
e saber pra onde eu vou.
Por isso me calo
e cerro os olhos por um instante:
no calor aconchegante
deste meu leito servil,
a preguiça é soberana. 

O Meio Inteiro


O que tem de ser um todo
não se presta a ser metade.
Vai além desta semântica
fazer crer que basta um meio
pra que o todo sobreviva.

O ambiente espera um meio
de manter a sua essência.
Ser o todo disso tudo,
a dar cabo do absurdo
de uma terra destruída
à espera de um futuro.

O ambiente é mais que um meio:
se completa na coerência
da preservação à vida.

Voyeur


Do alpendre te observo, em silêncio,
vestindo-se entre cortinas semicerradas
neste prédio alpino,
vista privilegiada.

Do alpendre te desejo, em silêncio,
teu corpo, teus segredos, teus instintos,
egoísmo tacanho
de tornar-me o teu destino.

Do alpendre percebo um cadafalso:
gélida sentença que a mim imputas,
frívola fuga,
devaneios de menino.