quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

"Sem Fases Para Poesiar"


Eu vou confessar um segredo:
não existe arcano.
O mundo se vai andando
e eu vou junto.

Eu vou proferir um absurdo:
não há o impossível.
O mundo se vai
pelos rios de janeiro,
marços e maios:
e eu, desmaio.

Eu vou balbuciar um grito:
não existem aflitos.
O mundo se vai pelos ritos
da África, Ásia e Europa:
e eu, muriçoca.

Eu vou fazer uma poesia:
não existe estilo.
O mundo se vai num cochilo
de normas, formas, se servindo:
e eu vou dormindo...



Do livro “Ovo À Milanesa”, 1994.

"Banco Do Brasil"




“...criei cenários
onde vivi interpretações
que jamais consagraram minha alma...”


Num banco do Brasil
perdido numa praça não encontrada
em algum lugar de Paracambi,
um mendigo se deita.
Ele obtém a cobertura da imprensa
através de jornais municipais
sob os quais se acomoda,
fugindo do frio e de sua realidade,
fugindo da assiduidade
de sentimentos que, antes,
não lhe eram comuns...
O mendigo que já não dorme
mas esconde-se da realidade funesta,
é o Brasil deitado em um banco.

E no metrô camuflado de pressa
luxo e riqueza ao estilo de Amélia
o executivo que executa ordens
prepara-se para assumir seu posto
numa filial do Banco do Brasil.
Lá ele tocará em dinheiro,
em papéis e contas de energia.
Ele não pode imaginar o mendigo imundo
que dorme em outro canto do Brasil
tão longe dali e tão longe de tudo,
tão morto quanto ele que morreu em vida,
duas almas separadas pela matéria fantasma:
a carne...

Indo à míngua tentando entender a língua
de dois Brasis tão diferentes
descubro, já tarde, que não sou poliglota...



Do livro “Ovo À Milanesa”, 1994.

"Olhos"



Olhar que não fito
Olhos que não beijo
Com meu olhar.

Olhos que se escondem
Por trás das cortinas
De pálpebras pesadas.

Olhar que foge
Daquele que quer
Existir em seu reflexo.

Olhar complexo
Nos olhos que labutam
Minha imaginação.



Do livro “Ovo À Milanesa”, 1994.

"Flores"



Trago flores para quem faz-se flor
E que com amor exala seu perfume
Quando assume a condição de pétala.
Delicada em suas formas mais cabais
Sem que jamais assuma a condição de espinho
Mergulhando nos profundos oceanos do carinho
E de tortura: na boca o sabor de sua doçura.

Trago flores, trago a loucura
A caminhar comigo em busca do seu ser
Se pra viver eu preciso de seus odores
E dos sabores de seus lábios, vem meu envolver
Faz-se suave esse querer que me entorpece
E que anoitece o dia claro a diabrura
É só loucura: fotossíntese é te querer...

Trago flores para quem sempre foi flor
E leva o sabor da minha boca em seu beijo
E o arpejo da minha canção em seu cantar
Hei de amar mesmo que encontre seus espinhos
Pois bom carinho os poda em forma de razão
Para querer, para viver e ser perfume
De tantas flores que enaltecem o doce odor dessa paixão...




Do livro “Ovo À Milanesa”, 1994.

"Bobo Da Corte"




No seu reino sou bobo,
sujeito às suas vontades
e ao sorriso em seus olhos.
Faço-me vassalo
dou cambalhotas e brinco
com seus gemidos e sussurros.
Na sua corte sou bobo
que vive para lustrar
sua coroa de mulher.

Redescubro a realeza
da beleza do meu pranto
o brilho cristalino
de cada lágrima que enxugo, caprichoso:
na sua cama sou bobo.

Faço sua coroa reluzir
lustrando-a com meus dias.
E nas noites, a nossa monarquia
um reino de amor em cada corpo.
Na sua corte sou bobo
de seu reino, pouco ou nada sei...
Mas em sua vida, eternamente,
serei rei...



Do livro “Ovo À Milanesa”, 1994.

"A Figura Do Poeta"



Dos cacos vive o poeta:
coração estilhaçado
pelas desgraças da vida
e amores desamados
que desarmaram o vate
e lhe causaram feridas
que sangram versos...

Dos desafetos se sustenta o poeta,
e de afagos perdidos no tempo
ao sabor da brisa hoje tão sem gosto.
Uma espécie de encosto
se apodera do 
poeta
e faz caberem nas letras
os desgostos no meu peito.
E, como efeito, surgem versos
que só o vate entende
e os faz traduzirem-se
nas rugas e cravos de seu rosto.

De lágrimas são feitos os contornos
do cenho finito ante a morte
que abraça o poeta com sorte,
feito entorpecente contíguo,
sombrios recôncavos do ser,
canto comum dos poetas
que não se deixam desvanecer...

Dos cacos se sustenta o poeta,
trapos à sua imagem e semelhança,
alimento untado em desesperança
do vate maluco e suicida
que sobrevive aos desafetos
e, somente por isso, sangra versos...



Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Soneto Da Liberdade"



Vomitei um poema sem estética
Pela boca bem mais larga da poesia
Toda boa rima rica enquanto fétida
Declamando estrofes plenas de heresia.

Vou mais longe, mais insano nessa métrica
De um soneto em verso branco, primazia
Nos momentos que a poesia se faz lésbica
E meus versos são tomados de anemia.

Quero ver livre o poeta declamar
Versos seus para rimar ou não rimar
E com musicalidade ou não, repita.

Como é mestre no seu feito de criar
A poesia que renasce a almejar
Essa livre inspiração mais infinita...




Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"LVII Dólares"




Pedaços de um céu fragmentado
desabam sobre mim.
E assim, somente assim eu me destrono
em versos cheios de poesia...

Resquícios de um véu
que acoberta dor e mentira
incendeiam-se na vida real.
E eu, apenas eu, serei capaz de sair vivo
da concentração em campo
de todos os dias.

Sabores de um fel
que despetala sonhos pródigos
perdem-se no tempo.
E o amor, só o amor,
se destruiu em cada angústia
e na tortura de meu peito cheio de heresia.

Pedaços da vida são vendidos em leilão
por um punhado de dólares.
E a poesia, eterna poesia,
insana e fragmentada,
unifica os estilhaços que compõem cada verso
do resto de nossas vidas...


Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Inspiração Venenosa"




Expiro:
suores nas roupas que uso
nas gavetas.

Espirro:
muco venenoso da poesia
nas palavras.

Transpiro:
desejos e formas das roupas que não uso
na poesia...

Retiro:
o disfarce das normas, suplícios que afogam
o poeta a cumprir pena...

Inspiração:
não vem do poeta, mas sim das roupas
que ele não usa.

Inspiro:
suores na caneta que vai, rasteja e vive
nesse poema livre...


Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Luar Alaranjado"



Sob a lua dos errantes
amantes que, doravante,
se perdem na melancolia,
eu descubro esta poesia
no afã de sentimentos
em momentos de inspiração.

No tesão dessa euforia
e bigamia literárias,
recomponho a nostalgia
nos versos desta poesia
em toda a sua estrutura
e dezembros da razão.

No manto sob o lugar
dos versos, rimas e estrofes,
foi erguido um patamar
de verso-branco e presente,
transformando mais poesia
em imagens do coração.

Sob o sol mais escaldante
da literária luxúria,
cada produto da fria
vontade de ser poesia
se inflama em cada átomo
e transborda de ilusão.

Sob a lua dos poetas
despojados de emoção
faço desta maresia
que corrói os sentimentos
um manto de pura poesia
que transgride a inspiração...


Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Florais"



Só me resta ser canhoto
pra ficar todo poeta.
Pois no peito impõem-se mágoas,
farpas da solidão tosca,
abrangendo o espaço e o tempo
que decantam o meu dia.

Só me falta a letargia
por drogar-me em teus sussurros
se meu corpo invade o teu.
Inundando tua vida,
fazendo da despedida
a chegada aos braços meus.

Encanta-me por seres simples,
mas me espanta o pranto teu.
No entanto, o gosto é bom
ao sentir tua pela seda implorando o meu perdão.
Perdoando-te bem mais, mordo a polpa dos teus lábios:
tua boca é meu refúgio e o querer nunca é demais.

Só me resta ser canhoto
e ter-te qual fêmea insana
pra ficar todo poeta.
Vou às rimas e estrofes
que compõem nossas vidas
tanto unidos quanto longe.
Pois por mais que a mão direita
queira escrever tais versos,
é a esquerda que comanda
os rumos do meu coração...



Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Gárgula Soturno"



Ah, vida, vulgar vida!
A vida preservada à custa das feridas
que sangram meu peito...
Concede um feito ardoroso
que eu te ofereço outra vida...

Vida dura, vida de atropelos,
puxa os cabelos e faz a dor
parecer uma despedida.
Oh, vida de tantos poetas,
de tantos amores além da vida...
Concede o sossego em meu peito
Que eu te ofereço o efeito vida...

Concede um amor por meu peito
que eu te ofereço outra partilha,
outra comédia por pura e simples sorte.
Vida de solidão, vida de amarguras,
te ofereço todos os meus dias,
todo o meu tempo e minhas alegrias
e tu me atiraras num rumo sem norte...

Vida desmedida, de mentiras e estátuas paradas,
qual fossem alçar voo.
Mas o voo não chega, tão cedo não chega,
a vida não chega – mas a chaga se faz dolorida.
Vida de solidão, de caos e passaporte
quando, depois, vem seu grande prêmio:
a morte...



Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Lirismo Radical"



As nossas sujeiras são nossas
no nosso orgasmo atemporal.
Orgia insana que nos entorpece.
Animais vorazes, insaciáveis,
nos vamos nessa gula desmedida,
perdida em plagas e recôncavos do ser:
a sujeira é nossa se é nosso o viver...

Os nossos momentos são nossos.
Sonhos reais em nada pudicos
no maldito ato do prazer carnal
sem medidas, total desvario,
num cio das carnes excitadas,
suadas, arfantes, amantes normais,
nos querermos mais se a fome não passa:
as bocas não param, os corpos se pedem...

As nossas sujeiras são nossas
se nos lambuzamos, incautos animais.
Quanto ao resto, tanto faz:
melindres do falso puritanismo
não podem conter a fúria inócua
de homem e mulher em coito insano
na orgia hospedada entre quatro paredes.
Porque as nossas sujeiras são nossas
e ninguém tem nada a ver com isso.



Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Dissabores"



Bem mais que amargo o sabor
dessa promessa de vida,
nos dias de pranto e de dor
e noites de vãs feridas.
A despedida do apresso,
o descontente sentido,
o sentimento ao avesso,
o peito a gritar, contido.

Em rimas num pranto, prontas,
O vate encerra seu peito.
Palavras torpes e tontas,
Frases de imoral efeito...

Dissabores tão claros
quanto a luz que não brilha
ao final deste túnel
que não possui vida.
Amargores não raros como risos sinceros
ao final de um tormento
que chamamos de vida.

Bem mais azedo o sorriso
estreito e sem altitude.
O desespero do peito,
fraqueza nas atitudes
e me adoece de jeito e me destrói a saúde
e me entorpece com a morte
roubando minha juventude...


Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Taiwan"



Dor e chaga, morbidez pungente
que absorve os dias
e noites cadentes
sem qualquer poesia.

Vastidão aflita pelo opaco ópio
da pequenez enrustida.
Sangra tão comprida, chega e descabela
a feita dor ferida.

Pus à deriva na dor amor, calor e fogo
tão arrebatadores
que os sonhadores
desfalecem dormindo...

Dor e chaga mortalmente opaca
ópio mórbido tempo, excremento vida
na missão cumprida.
Sangra deferida, mais despudorada
que a dor da vida
sem qualquer poesia...



Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Mortos No Salão"


Eles giram, pensam viver,
Não vão longe, perto, agora.
Se se tocam, sonham, lepra.
Se se beijam, boca, orgasmo.
Marasmo de corpos que baldeiam
Pela pista iluminada, encanto, espaço...

Vão para perto, revólver, tiro
Gritos e multidão tingindo de vermelho
Esse verão – se estatelam, mortos no salão,
Longe da vida e de suas virtudes...

Eles exploram latitudes, pés pisados,
Sangue pisado, desespero, odisséia,
Casal, sepulcro, tudo por diversão,
Dinheiro, fadiga, orgasmo nos olhos da assistência
A regozijar o ocorrido, cidade, todo mundo...

Vão pra terra, sino, cemitério,
Histeria e pranto dos outros
Tingindo de glórias a morte,
A estação que não muda mais,
Longe da vida, frio de mármore...

Estavam mortos no salão.
_Não estão mais:
rabecão.



Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Réptil Divórcio"




Voz de quem me chama
na cama, na chama,
que chama ardente e reclama
por gente a se acasalar.

Voz que me chama
na sala, na mala,
no carro que pára na esquina
e manobra, pensando em voltar.

Voz que chama na varanda
e anda em passos lentos
meio tortos, dúvida,
certeza em não retornar.

Voz que me chama
no peito, sem jeito,
perfeito modo de fazer a gente
se rastejar...


Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Jornal Do Brasil"




“...leio notícias
e absorvo informações
que me estimulam o pensamento...”

Nas manchetes dos jornais
o país é retratado com indócil sensatez,
abalando as estruturas
das planícies e planaltos
carcomidos pelo poder.

E no coração, a ardósia
que chegou e tomou conta
regalando a resistência
aos escândalos diários
que registram a hipocrisia
e as doenças mais humanas
desse nosso dia a dia.

Acompanho noticiários
nos diários – tão somente –
e a interferência é branda:
num país de alienados
se limita ao pensamento.

Leio notícias
e a primeira página fala em corrupção.
Penso em reunir as massas,
planejo uma guerrilha,
elaboro uma revolução.

Mas estaciono no pensamento:
as massas apressam-se na volta para casa
pra dar tempo de assistir a televisão...


Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Guia De Depósito"



Raça minha que aposta tudo em ti:
se perder, sairei ganhando
pelo simples fato de ousar tentativa.

Puro sangue que transborda essência:
concreto armado
expelindo leite condensado
que absorves, louca,
confinando-me às tuas vontades.

Vaidade: deposito em ti parte do que sou
e confiro o extrato para ter a certeza
de que o amor compensou.

Faço a vala e enterro,
nos anais da História,
o Brasil onde nossa história se passa,
pelo fato ingrato de que foi aqui
que Deus nos depositou
sem pegar extrato
por ter esquecido a senha...



Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Fax"




D.O.S.,
se o D.I.U. pariu pela Internet
um filho de gueixa!

Telefono em vão,
pois seu retrato não desdenha a voz que diz:
eu te amo.

Voz, sussurro a sós:
pelo outro lado imagino um retrato
sem que o colorido
se retrate agora.

A distância encurta o amor infinito
pelos céus aflitos de um monitor:
computador cuja placa-mãe
não condena nada.

Chega pelo fax um retrato teu.
E pela Internet, com ou sem D.O.S.,
eu te amo, enfim.




Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Lentilhas Poéticas"



Erro no caminho do esgoto da vida
lama lânguida de orvalho prazeroso
que não caí...

Erro na estrada de encruzilhadas mórbidas,
curvas tortas que deslizam a pista
e despistam os atropelos.

Erro nos dias e decididos decibéis,
nos gritos loucos do trânsito ostensivo
dos passos na calçada.

Existência, espelho da poesia
que espia à espreita o tempo todo.
Tolo como uma lentilha, vacilo no trânsito
que desliza nesta pista
e despista os atropelos
e erros...



Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Vida Poética"



O meio mais rápido de chegar até ti
É caminhar por mim.
Descobrir meus defeitos
Pra fazer vista-grossa aos teus.
Melhorar meu jeito de ser
Pra ser de acordo com teu modo
De pensar, de agir, de me ter e se divertir.
Vou longe em teus passos estando em mim...

O meio mais rápido de chegar até ti
É mapear minh’alma.
Descobrir em minha palma
Linhas que me conduzam a ti.
Consertar meus erros ao vento, ao relento,
Tendo a ti e sendo teu até o fim.
Não há oferta pra quem mostre os caminhos do coração...

E na paixão, quem sabe amor,
Pôr fogo ou talvez por calor,
O meio mais rápido de chegar até ti
É ter-te em mim,
Vivendo minha vida se vivo teus dias
Dormindo meus sonhos e minhas letargias,
Fazendo de mim o que bem entenderes.
Sou escravo de teus prazeres
Se estou em ti quando estás em mim.
Vivemos melhor se vivemos assim.
O tempo não pára, o infinito não espera:
Alcançamo-nos, por fim...



Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Sopa De Baratas"



Junte a elite assaz burguesa 
reunindo oligarquias.
Deposite pitadas de governo
sem exageros, para evitar estragos,
ponha a classe patronal e alguns sindicalistas.


Mexa bem o panelão de futilidades
e desgrace o conteúdo com tempero proletário.
Coloque pitadas de oposição,
de banqueiros e executivos,
de empresas de “crédito fácil”.


Finalmente ponha a violência, 
o sequestro, o tráfico
e o “desatendimento” ao menor de rua.
Bata tudo num liquidificador 

conservando em banho-maria
durante não menos que duzentos anos.
Unte com dados fraudulentos
de concorrências à bancarrota
e sirva tudo como exemplo às futuras gerações.

No caldeirão com dentes de alho,
óleo de soja e suflê de morcego,
o Brasil pode ser preparado e servido
como uma sopa de baratas cascudas.

Para os que quiserem provar,
não haverá qualquer restrição.
Apenas recomenda-se cuidado 
para não sofrer uma indigestão
e acabar vomitando o país
em sua real forma e condição.

Bom apetite.


Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997
(Adaptado)

"Abricó De Smoking"




A gravata me sufoca,
porém sufoca-me mais a tua ausência
na falta que sinto de ti.

Se teu prazer 

não geme mais o meu prazer
nos teus desejos mais arfantes,
é porque hoje nada será como antes:
manhãs sem pássaros,
noites andantes e solitárias,
vazio, melancolia, vida torpe,
ranço, mágoa, farpas vorazes
consumindo nossas vidas qual cigarro:
restam as cinzas...

Se o teu sussurro não mais murmura
palavras tuas quando minhas
nos teus desejos bem mais meus,
é que a sombra de um deus
da mentira e da amargura
vomitadas por estranhos 

em um ninho que era nosso,
fez o sonho virar pó 
que não cheiramos...

Nos anseios da liberdade,
vamos loucos, desnudados,
numa praia em que a saudade
feito o mar, nos engoliu...



Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Poeta Verossímil"




Num lugar algum, o vazio ocupa
um espaço inexistente.
E o marasmo onipresente
contrasta com a beleza que vacila,
caminhando em passos trôpegos e fatais
onde o nunca sempre existiu jamais.

Num limitado infinito
pulsando, aflito, o tempo se esvai.
E o vácuo rebelde
desloca-se na brisa contida
pelo orvalho que não cai – e mais:
cala-se menos e sem orgulho
por nada, por tudo.

Num lugar algum, o vazio é ocupado
por meu coração.
Sem a paixão exacerbada
nem a mesma alma magoada,
vou-me contido em versos mudos e iguais:
onde o nunca sempre existiu jamais...




Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"D'a gente"



O dia nasce feliz ou nasce triste
dependendo da poesia.
Na lógica da vida, percebo que a mudança
vem como uma rasteira, nos fazendo rastejar.

Se sobrou em nossas vidas
os restos de tantas feridas,
de saída nos lembramos
que somente um passo forte
pode evitar a rasteira.

Pode ser besteira ou não,
mas me traz esta beleza
que encanta minhas vistas
e adoça minha boca
com um beijo de avelã.

O dia nasce feliz
pra fazer d’a gente um riso
e d’a gente fazer parte
tanto em Marte quanto aqui.
Pois o dia e a eternidade
se misturam em nossas vidas
e se encontram em cada beijo
nesse amor que é só d’a gente
dependendo da poesia...




Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Pan Am"



A nossa música não toca,
nem evoca sabores que curtimos
no passado, farpado,
por redes e intrigas fermentadas a pranto e saudade
que nunca sentimos.

A nossa música não soa
ou ecoa pelas ondas invisíveis
que circulam pelo ar.
Mal de amar e de doar o coração onipotente:
presente, só a solidão muda a nos acompanhar.

A nossa música perdeu o ritmo.
Ficou velha e toca apenas nos programas nostálgicos
ou nos palcos de serestas vazias,
nas noites frias, nos olhos úmidos,
nos remorsos: sereno ar
a pousar sobre a terra viciada em vida
- despedida com vontade de chegar...

Voo alto em partituras dissonantes
que, antes, davam tons a nossas vidas:
saborosa sensação de não te ter...



Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Veneno Nos Olhos"



Só posso evitar, a muito custo
O doce querer que me amotina.
No meu coração, o pranto é justo
Encanta e balança em pura sina.

Só posso pensar, feito num susto
O quanto a semente, em mim, germina
Quando me compele a olhar teu busto
E faz do meu peito estricnina.

Assanha ilusões, agora susto
Com meu padecer, outrora injusto
Se mata, parece que ensina.

Detenho o poder, enfim, me assusto
Provém do querer com o qual ajusto
O meu coração que te elimina...



Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Outro Tema Secreto"



Perdemos a vitória.
Cedemos aos achaques 
e aos ataques mais sutis,
proferidos pelas bocas
que, há tempos, já não beijam.
Cometemos o engano
de ouvir palavras tortas
ditas por tais bocas mortas,
tão hipócritas, morais...

Nossos corpos, como almejam
o sabor do santo orgasmo
que ainda não tivemos!
Vamos nós neste marasmo 
que na vida assim se fez
se desfez um querer puro,
infantil de tão maduro,
mais pra prosa que poesia.

Perdemos a vitória
sem provar do seu sabor.
Vamos juntos dar a forra 
nestes falsos puritanos
praguejando: que se danem!
Pois é nesse amor infame
que faremos nossas vidas
mais poesia do que prosa...


Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"Da Poesia, Da Flor e Do Pólen..."




Se acaso soubesses o quanto nas preces
eu peço por ti,
irias partir de encontro a meus braços
e em gracejos e amassos me desarmarias...

Se acaso me desses o doce replay
de ter-te comigo,
serias abrigo ao peito que inflama
na incontida chama de ser bem mais teu...

És tema secreto em toda a poesia
que faço com afeto e só para ti.
És tema concreto nas noites que sonho
nas rimas que faço quando te componho...

Se acaso pudesses supor quanto quero
ser teu no teu peito,
qual flor te abririas e me abrigarias
tendo-me em teu pólen com qual me amarias... 




Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

"O Conto Da Terra"



Terra e vento que me tocam
na alquimia natural...
Gozo fundamental, alegria de estar vivo,
solidão nos lábios meus...

Pedra filosofal apedrejando a sabedoria
concedendo uma euforia
que absorvo em campo vasto.
Não me basto de mim mesmo
e curto a esmo este contato
e essa troca de energias com a terra, vento, água,
tempestade a findar mágoas
que não estão neste poema.

Meus lábios solitários
tocam o beijo da Mãe-Terra
e navegam por seus seios...
Terra, vento, água, vida,
curando certas feridas
que não estão neste poema
e que outro dia eu conto...




Do livro “57 Poemas Brasileiros”, 1997.

Biografia de Sérgio Cortez

VIDA
Sérgio Cortez nasceu no Rio de Janeiro, em 03 de março de 1972. Filho de um comerciário e de uma professora, após o término do Ensino Médio, ingressou na universidade onde se formou em Geografia, pós-graduando-se dois anos depois. Apesar de sua formação acadêmica, Sérgio Cortez demonstrou desde cedo sua vocação para as letras e para a música. Já compôs em variados estilos para diferentes artistas iniciantes e teve muitas de suas canções interpretadas por bandas como Neurose Social, Poetas Suburbanos, Estratagema e, mais recentemente, pelo Grupo de MPB Carcará.
A insatisfação do homem diante das próprias conquistas, a falta de perspectivas em relação às vicissitudes da vida e os paradoxos sentimentais presentes no cotidiano das relações humanas são temas marcantes na obra de Sérgio Cortez.
ESTILO
O mais intrigante na obra de Sérgio Cortez é o fato de que o autor não possui um estilo que prevaleça sobre os demais. Seus romances apresentam tramas variadas, cujos textos e ideias não se repetem – o que faz uma história não se parecer com a outra. Nos contos, o autor constrói estruturas literárias que caminham por sentimentalidades intrínsecas e extrínsecas que, em geral, o ser humano esforça-se em esconder. Já na poesia, seu estilo é marcado pelo questionamento dos dogmas literários, pela valorização de objetos e utensílios do cotidiano e pela análise das conturbadas relações humanas - que também são objeto de atenção do autor em seus romances e crônicas.




OBRAS
Bastante variada, a obra de Sérgio Cortez trilha por vertentes que vão das músicas e poesias criadas a partir dos anos 1980 até as inúmeras crônicas publicadas em diferentes jornais ao longo dos anos 1990.
Em coautoria com o poeta Demétrio Sena lançou, em 1994, o enigmático “Ovo à Milanesa”, reunindo alguns de seus melhores poemas do período. Em 1995 publicou o romance “Perfil Interior”, divulgado na VII Bienal do Livro no Rio de Janeiro. Já no ano de 1997, publicou “57 Poemas Brasileiros” - apenas com suas próprias poesias - obtendo ainda o 3º lugar Concurso Literário do Servidor Público do Rio de Janeiro com o conto “Sangue das Almas”.
Entre 1999 e 2012, Sérgio Cortez labutou em poemas, canções, romances e contos, introduzindo gradativamente uma parcela de tais trabalhos no universo virtual. Durante quase três anos foi responsável pelo blog Ou Será Que Não? e disponibilizou na web uma parte significativa de seus poemas através do Beco da Poesia.

Em 2012, depois de 5 anos de trabalho, finalizou e publicou no Clube De Autores o romance "Rosa Colete À Prova De Balas". Já no início de 2013 Sérgio Cortez lança a coletânea “Beco da Poesia”, também pelo site Clube de Autores.
Trabalha atualmente numa compilação de contos e lançou seu novo livro de poesias, "Manual da Poesia Fajuta" (2015) somente com inéditas e de acesso gratuito no Wattpad. 
Paralelo à carreira literária, Sérgio Cortêz fundou, em 24 de novembro de 2017, a Rádio Vintage - web rádio na qual o autor expõe sua vocação para a comunicação, através de uma variada grade de programação que busca atender aos mais diferentes gostos musicais. 

domingo, 28 de novembro de 2010

"O Conto Da Vida"



O conto que conto
encanta e desencanta
qualquer cântico de dor.

Pois o amor com que faço
um esplendor nesta poesia,
vai moer toda a dor do dia-a-dia
pra encantar este conto
em que me encontro.



“Nanopoesia” (2005-2007, inédito)

"Marisco No Deserto"



De certo, arrisco
qual marisco
em areias fumegantes
sem trincheiras.

Não há boas maneiras
nem pessoas de leva-e-traz.

Há muito mais:
tua boca cheia de beijos quentes
feito areia onde o marisco se enrosca
só pra fazer chover saliva.




“Nanopoesia” (2005-2007, inédito)

"Microscopia"




Sanados dejetos
na grande extinção,
não vai ter cristão
que salve su’alma.

É só transição
este mundo tão vago
quanto uma simples goiaba.

É o que nos contam
os micróbios gelados
adormecidos por céus de chão.




“Nanopoesia” (2005-2007, inédito)

"Doce Heresia"



Da ternura que te faço,
em cada sonho que componho,
surge um sentimento nobre,
tão pecado, tão de cobre,
que só vem pra atazanar.

Mas, silente frente ao sonho
me enfadonho de poesia
pra nutrir a tua imagem
com desejos constrangidos
que adoçam esta heresia...



“Nanopoesia” (2005-2007, inédito)

"Paradoxal"




Da tormenta, faço o sol,
Do mamute, um rouxinol,
Imaginação infinda.

Do açúcar, faço sal
Do que é raso, um abissal,
Imaginação e tal...


Deste espaço, faço tempo
imaginando o bom momento
em que volto ao teu abraço
e tudo fica certo, então...



“Nanopoesia” (2005-2007, inédito)

"Flavinha"



Fostes cedo, mas ficastes
na memória de quem está,
na saudade deste tempo...

Tanto mais, sobra pra nós
os momentos em que a vida
é porta-retrato de lembranças.

Fostes jovem, mas estás
no coração de quem lembra
com o carinho que não jaz...



“Nanopoesia” (2005-2007, inédito)

"Sombrio"




Luz voraz que vem cegar-me
no prazer da claridade
clandestinamente...

Luz incandescente
opaca, opala, fluorescente,
abraça-me...

Traz claridade ao infortúnio
com intuito de ser luz
e dar vida à minha sombra...



“Nanopoesia” (2005-2007, inédito)

"A Beleza Da Negra"




A savana em seu corpo
incendeia-se: a vida recomeça.
Paisagens vegetais
que estimulam meus olhos
tanto quanto uma mulher.

Florestas que enfrentam desertos,
de certo que fico absorto.

A beleza que agiganta o continente
não esconde o abandono
de uma gente desnudada...



“Nanopoesia” (2005-2007, inédito)

"O Grito"




Vou dar graças ao Senhor
por ter nascido
e por ter, até o momento, sobrevivido
a sentimentos que emudecem
o meu grito...

Vou dar graças ao Senhor
e assim repito,
só pra não ficar sem graça
frente à vida que se passa
e eu nem ligo...



“Nanopoesia” (2005-2007, inédito)


"Leitura"




Há de ser um dia livro
Tudo aquilo que vivi
Por prazer ou por vaidade.


Há de ser uma saudade
Que por instintivo orgulho
Vou dizer que não senti.


Hei de ler este meu livro
Quando o peso destes anos
Não couber em qualquer página...



“Nanopoesia” (2005-2007, inédito)

"Instinto"




Queima e aquece qual lareira,
enlouquece sem juízo,
apedreja meu bom senso
e me julga um tanto herege.

Faz arder hormônios jovens
resguardados entre rugas
que se despojam em sorrisos.

Mais que isso: és boa cama,
criadora de má-fama,
porém boa em meu instinto...



“Nanopoesia” (2005-2007, inédito)

"Puto Com a Puta"



Ei-la: Leila
sem eira nem beira,
na sobremaneira de não ter juízo.

Fico puto com tudo isso:
é só prejuízo dar crédito à Leila
sem eira nem beira.

Só encontro barreiras,
trincheiras e asneiras
vindas da Leila que não tem juízo:
enquanto eu nada tenho com isso
- nem Leila...



“Nanopoesia” (2005-2007, inédito)

"Coquetel Molotov"




Isso é pura putaria,
coisa suja, quase asneira.
De arroubo se estou de bobeira,
me toma sem aviso,
quase de brincadeira...

E eu fico numa de sério,
fingindo só tédio
num puro tesão...

Explosão: baixo os olhos
e fico silente, olhando entre coxas,
quase inocente...


“Nanopoesia” (2005-2007, inédito)

"Segredos Submersos"




No fundo do poço
há qualquer coisa:
talvez uma rocha,
uma velha raiz...

Quem sabe a esperança
de uma meretriz
fingindo-se Iara
para me encantar...

No fundo do poço
há peças perdidas
de vidas passadas e adormecidas
na gélida água
que insiste em brotar.

Quiçá haja um lar
para sonhos perdidos
ao longo do caminho
entre o fundo e o lumiar...

No fundo do poço
há mais uma coisa:
um troço de amor
pra ficar escondido
sem qualquer ajuda,
sem nenhum aviso
para, secretamente,
feliz, se afogar...



“Nanopoesia” (2005-2007, inédito)

"Gabrielado"




O meu filho é quem mais amo,
muito mais que a mim mesmo,
muito menos que eu queria...

O meu filho é minh’alegria
muito mais que uma folia,
bom enredo e carnaval.

O meu filho é parte minha
mas, no todo, sou mais ele:
deu a luz à minha vida.



                            Para meu filho, Gabriel Taranto.




“Nanopoesia” (2005-2007, inédito)

"Complexo De Rousseau"



O que te estraga é o plenilúnio,
que transcende em teu sorriso
e que deslumbro em teu olhar.

Não há tempo para sermos sempre os mesmos
sem nos permitir corromper
por desencantos da vida.

O que te repara é o mesmo sorriso,
e é somente por ele e por tudo isso
que me sinto capaz de te deslumbrar...



“Nanopoesia” (2005-2007, inédito)

"A Gota D'água"





A gota d’água, a gota poesia
A gota da minha poesia.
A gota mulher, a gota homem
A gota mistério, a gota que esgota
A gota que enche, a gota d’água.

A gota d’água
De um ribeirão, de uma torneira
De um balde, cheia de vida
Cheia de criação, cheia de oxigênio
Cheia de balde, cheia de torneira
Cheia de ribeirão.

A gota mistério, a gota histérica
A gota calada, sua real plenitude
Sua ideologia de ser apenas a parte
Menor ainda maior
Que toda e qualquer nuvem.
Sua vida de rumo incerto, seu anonimato
De ser apenas uma gota.

A gota d’água que cabe num copo
Não cabe no tempo.
Que cai sem destino, que cai calada
Mas cai, dá um salto, um salto para a vida
Vida de um balde, vida em uma torneira
Vida em um ribeirão...

A gota d’água
É o maior universo
Da criação...



Do livro “Ovo À Milanesa”, 1994.

"Pano de Prato"




Depressão em forma de orgasmo
sarcasmo, desgraça da vida
sofrida, seca, trabalha e pensa
não pensa:
é só um pano de prato.

A mão que lhe afaga é suave
ou quase, a mão da senhora calejada
amada, por um homem que não lhe toca
marasmo:
é só um pano de prato.

A alça que lhe prende é de madeira
besteira, sua vida ali está presa
surpresa, ele vai ao chão e não é amparado
magoado:
é só um pano de prato.

A criança que lhe pisa é herança
esperança, á água limpeza, a dor
pregador:
é só um pano de prato.

O gato que lhe solta pelos o despreza
reza, ao deus dos panos um amparo
raro, um olhar que aprecie sua beleza
o fato:
é só um pano de prato.

E o tempo há de vir e apodrecer-lhe
e ver-lhe: jogado um monturo de um muro
apuro: será apenas mais um maltrato
mas é grato:
é seu destino de pano de prato.



Do livro “Ovo À Milanesa”, 1994.