Com muito carinho eles nos criaram. Talvez porque, se numa
noite gélida rolou um clima e, como num de repente, os ânimos se exaltaram - levando a momentos de amor e desejo que se tornaram tão reais quanto antigas juras
sinceras sopradas ao pé do ouvido – e por isso nós fomos fecundados –, subentende-se que não tivemos culpa e assim coube a eles tal
responsabilidade.
Mas isso de nada
valeria não fosse o amor proveniente de tão ávido ato. Foi o amor que se tornou
múltiplo nas células que se expandiram no ventre materno, até que se tornassem um
embrião, depois um feto e, passados exaustivos nove meses, uma nova pessoa
cercada de amor por todos os lados. Uma ilha tão frágil e delicada aspirando cuidados, exalando o doce e inconfundível perfume da infância.
Com esse amor eles
nos criaram e conviveram com nossas fantasias de infância, tão cheias de vida
quanto nossos corpos ainda tão jovens. E então, no momento em que aprendíamos
as primeiras letras com a tia da escola – que, mesmo sem ser parente, deixou
saudade – muitas vezes não sabíamos e muito menos percebíamos: lá estavam eles,
refletindo sobre o que nos tornaríamos na idade adulta, como nos sairíamos
diante dos maiores problemas, que tipos de amigos teríamos e com quem iríamos
nos casar. E nós nem sequer pensávamos que eles imaginavam tudo isso.
Então chegamos à
adolescência e foi aí que começamos realmente a dar trabalho. Há uma velha
frase que diz: dar conselhos a um adolescente é como querer ensinar um peixe a
tomar banho. Há certo sentido se considerarmos que, na maior parte das vezes,
com nossa rebeldia e sangue ainda fervente à flor da pele,tentamos subjugar os
conselhos que eles nos davam, negligenciando a experiência acumulada ao longo
de suas vidas, como se nós fôssemos donos da verdade. E eles se preocuparam com
nossas atitudes, e muitas vezes nós fomos rebeldes além da conta. Porém, como
todo adolescente inquieto, quebramos a cara em diferentes ocasiões, até que entendêssemos que mais vale aprender com a experiência dos mais velhos a sofrer
com nossos próprios erros. E foi nos momentos mais difíceis que eles
demonstraram a fortaleza do amor que sempre sentiram por nós.
Por fim, chegamos
à idade adulta. E por mais que a barba insistisse em crescer ou nossa carteira
de trabalho fosse assinada, eles sempre nos viam com aquelas crianças de
outrora. E era com se a história começasse outra vez: detentores de plena
personalidade, capazes de superar problemas e decididos em relação a nossos
interesses, nós começamos a tomar as rédeas de nossas vidas, sempre sob o velho
conselho: “tome juízo, meu filho”, repetido inúmeras vezes por nossos pais. E
foi nossa vez de sentir amor, de fazer amor e ter esse amor personificado, de ter
as mesmas preocupações e ansiedades que eles tiveram conosco, de amar outra
pessoa advinda de nós, como eles nos amaram e como, eternamente, vão nos amar.
Acho que a
humanidade funciona assim: ciclos repetidos que se alteram sensivelmente a cada
nova geração. Pode ser que muitas sejam as coisas que se transformam no mundo.
Pode ser que estejamos sempre sujeitos a novas tendências, a novas situações e
paradigmas. Mas, certamente, o amor entre pais e filhos será algo imutável,
como imutáveis são as estrelas no céu.
Jornal O Gazetão, 1996.
Coluna Sociedade Crônica
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