domingo, 22 de março de 2015

"Johnny Mnemonic"


    Ele acordou, olhou para a janela e não quis se levantar. O galo mal havia dado o toque de alvorada e ele pensou em mais um dia de trabalho, no qual teria o prazer de ver nascer o sol, apertado dentro de um coletivo lotado. Calçou o chinelo, escovou os dentes, tomou café com pão, deu um beijo na mulher gorducha, acendeu um cigarro e se foi.
     Dentro do ônibus pagou a passagem, pegou o troco e chegou-se aos amigos. A mesma conversa, os mesmos comentários e um cara esquisito que ele achou otário por dar o lugar a uma mulher suspeita, pois dizia estar passando mal - e que, por “milagre”, sentia-se bem dez minutos depois.
      Chegou ao trabalho: o relógio de ponto, o banheiro imundo, as mesmas máquinas barulhentas e rabugentas. As mesmas atividades que sempre fazia mecanicamente, sem ter que usar a mente para coisas complicadas – exceto pensar nos filhos, razão pela qual se encontrava ali, trabalhando como louco.
     Na volta para casa, os mesmo caminhos, a mesma estrada, o ônibus lotado, o "CC" do sujeito de pé ao seu lado, a mulata de fogo em pé à sua frente (nas curvas, a glória do trabalhador!). E ele pensava em adultério, mas mudava de ideia ao lembrar-se dos filhos e dos dengos da esposa gordinha e cheirosa, preparando a janta para ele comer com os mesmos movimentos.
     Passou na birosca, tomou um bom gole, brincou com a "piranha" atrás de seus homens, depois foi para casa sentindo uma angústia que não compreendia. Talvez a labuta o estivesse matando, talvez fossem os anos que iam passando e ele não via. Era só uma agonia, não deu importância por que era homem e nada temia.
     Chegou em casa, abraçou os filhos, beijou a mulher, banhou-se e jantou. Os mesmos movimentos que fazia todos os dias. As mesmas coisas, quase repetidas, poucas variáveis no cotidiano. Decidiu pensar ao invés de ter pensamentos, como sempre fazia. Sentia que o próximo dia seria tão igual quanto todos os dias. E teve então uma veloz conclusão: era essa a razão de sua agonia.
     Ao ver um anúncio na televisão que apresentava um novo filme em cartaz e entender que o roteiro tratava das aventuras de um ciborgue do futuro (informática e outros lances que ele não entendia bem), o velho homem cansado concluiu que não havia grande diferença entre o futuro e o passado. Os movimentos ritmados, a letargia voraz, tudo capaz de fazer a todos o que o filme impunha a seu protagonista: robôs humanizados, simples figurantes na rotina da vida.



Jornal o Gazetão, 1995
Coluna Sociedade Crônica 

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