Era um dia lindo como outro qualquer. O sol quente me fazia sufocar dentro da camiseta de algodão; os pés pareciam ferver dentro do sapato envernizado; a poluição me tirava o fôlego como se o cigarro já não bastasse; meninos sujos e esfarrapados dividiam o espaço da praça com mendigos sifilíticos; um idoso vomitou todo o café da manhã na fila do banco, à minha frente: realmente, um dia lindo!
E eu ali, carregando alguns documentos que precisavam ser copiados. Caminhei em direção a uma papelaria para tirar algumas cópias quando me deparei com ela, que me pareceu à coisa mais linda do mundo: cabelos longos e lisos qual uma cachoeira de elegância e harmonia; a pele, um convite quase irresistível de uma maciez flagrante; corpo de Vênus, modelado pela natureza com todos os caprichos mais cruéis e um jeito; um modo simples de ser nobre a me envolver, enquanto eu pegava minhas cópias e pagava pelo serviço.
Pouco ou nada nos falamos. Não me olhou em nenhum momento. Parei na frente da papelaria, fingindo conferir os documentos xerografados. Titubeei. Senti vontade de retornar a ela, dizer-lhe o quanto era linda e o quanto fora bom tê-la visto naquele momento. Voltei-me para vê-la mais uma vez: estava ocupada atendendo outro freguês, provavelmente alguém que não teria olhos para aquela beleza angelical. Tornei a pensar em um milhão de hipóteses: talvez ela gostasse de um elogio, pois em meio a tanto trabalho algumas palavras doces lhe fariam bem; talvez ela se assustasse com o atrevimento de um desconhecido; talvez ela ficasse surpresa com uma atitude tão inusitada.
Tornei a observá-la: linda, plena, suave como o movimento de pétalas sob a dança da brisa doce e vaidosa. Mas ela novamente sequer me notou. Pensei em ser radical, dizer o quanto ela era esplendorosa, que fora feita para ser amada, muito amada. Sim, seria louco a esse ponto, pois não me importavam as consequências desse ato. Mas ponderei: ela poderia me julgar petulante, talvez até tivesse a atenção chamada pelo dono da papelaria.
Desisti. Era melhor ir embora e esquecer a coisa mais linda que eu havia visto em toda a minha vida. Foi quando me voltei uma última vez, apenas para guardar na memória sua beleza: ela também me olhou e estava sorrindo para mim. E acenou, novamente sutil.
Era um dia lindo, mais do que qualquer outro...··.
Publicado no jornal O Gazetão, 1995
Coluna Sociedade Crônica
2 comentários:
Belo texto. Aplausos
Muito obrigado, Tv Murrão. Muito me honra sua leitura. Seja sempre bem-vindo ao Beco da Poesia. Um ótimo 2017 para si.
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